Cientistas brasileiros geram primeiro coral de proveta do País

Óvulos de coral utilizados por pesquisadores da UFRGS. Foto: Mari Lopes
Óvulos de coral utilizados por pesquisadores da UFRGS/Foto: Mari Lopes

Após quatro anos de estudos, um projeto conseguiu gerar in vitro um coral, pela primeira vez no Brasil, a partir do processo de criogenia, com congelamento dos espermatozoides, seguido de inseminação artificial. O projeto foi apoiado pela Rede de Pesquisas do Instituto Coral Vivo e financiado pela Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza.

Os resultados da pesquisa, que gerou indivíduos da espécie coral-couve-flor (Mussismilia harttii) em ambiente de laboratório, são animadores para a preservação dos recifes de corais, ameaçados por uma série de problemas, como a poluição e o aquecimento global. Uma projeção da Unesco apontou que 50% dos recifes de corais do planeta desapareceram nos últimos anos e que as mudanças climáticas podem influenciar na sua extinção até o final deste século.

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A pesquisa desenvolvida e coordenada pelo zootecnista Leandro Godoy, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pode contribuir futuramente para repovoar a costa brasileira com novos corais produzidos em laboratório.

Em 2019, durante a primeira fase do estudo, os cientistas e técnicos do Instituto Coral Vivo foram a campo, no Parque Marinho do Recife de Fora, próximo a Porto Seguro (BA), para coletar algumas colônias de coral e começar a investigar detalhes da fisiologia dos espermatozoides e óvulos expelidos pela Mussismilia harttii, espécie encontrada apenas no litoral brasileiro.

A Mussismilia harttii tem característica hermafrodita, ou seja, encontramos os dois sexos no mesmo pólipo. Ela lança na água um “pacote de gametas” de 1,5 centímetro – cada pacote contém bilhões de espermatozoides e centenas de óvulos. Depois de liberado no mar, o pacote se rompe e espermatozoides e óvulos flutuam na água até se encontrarem para a fecundação e gerar um embrião.

No oceano, os espermatozoides conseguem sobreviver por cerca de 22 horas e estima-se que apenas 1% dos óvulos fecundados conseguem “pousar” (assentar) em uma superfície do oceano para formar um coral “recruta” (espécie de bebê coral), que pode levar até três anos para crescer apenas um centímetro no oceano. “A geração de um coral e seu desenvolvimento são quase um milagre”, diz Godoy.

Dificuldade

A reprodução da espécie acontece num período específico do ano, nas noites de lua nova entre os meses de setembro e novembro. O conhecimento desses detalhes por parte da equipe do Coral Vivo foi fundamental para dar início a primeira fase da pesquisa. Após a coleta, os corais eram levados para a base do Instituto Coral Vivo, também na Bahia, onde os experimentos foram realizados. O sêmen dos corais ficou congelado a uma temperatura de -196ºC por dois anos e meio, em um laboratório da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Esse foi o primeiro banco de sêmen de corais do Oceano Atlântico Sul, contando com cerca de 2 bilhões de espermatozóides – suficientes para repovoar um recife de dimensão equivalente a 606 campos de futebol, quatro Parques Ibirapuera, quase dois Central Parks, três países de Mônaco e 15 cidades do Vaticano.

“Após permanecerem estocados em um botijão de nitrogênio líquido, cerca de 84% dos espermatozóides estavam viáveis. O sêmen descongelado, em todas as concentrações testadas, promoveu uma taxa de fertilização in vitro de 100%”, afirma o zootecnista.

O método mais lento de congelamento acabou se mostrando o mais eficaz. O sêmen foi descongelado aos poucos para que as células não fossem prejudicadas. Isso porque os cientistas não podem simplesmente pegar o material biológico e colocá-lo em baixa temperatura, pois são compostos em grande parte de água e, ao serem expostos a temperaturas abaixo de 0°C, invariavelmente são formados cristais de gelo. Se um cristal de gelo – que é pontiagudo e irregular – se forma e cresce dentro de uma célula, ela morre.

Utilizando-se de protocolos para realizar a fertilização, os pesquisadores colocaram os óvulos e o sêmen descongelado em uma proveta para que a fertilização acontecesse e um embrião fosse formado. Depois desse processo, a proveta seguiu para um aquário de vidro. Três horas mais tarde, os pesquisadores já observaram o óvulo em processo de divisão celular. Segundo o zootecnista, dentro desses aquários foram fixados pequenos pedaços de azulejos (que foram submergidos por 2 meses para criar uma cama de microfilme), onde os óvulos foram depositados e permaneceram por uma semana.

“Naquele momento, já era possível observar pequenas larvas nadando e buscando um lugar para se fixar”, diz Godoy. De acordo com o cientista, a taxa de assentamento das larvas no azulejo foi de 26% de todos os óvulos fecundados “É uma taxa super alta, considerando que, na natureza, apenas 1% consegue se fixar em alguma superfície”, explica.

Apesar de todas as dificuldades encontradas pelos cientistas, a notícia é animadora. Com o aquecimento global, lixo, pesca predatória e o derramamento de petróleo, especialistas dizem que o oceano está à beira de um colapso. Segundo Godoy, uma terceira fase do projeto ainda é necessária para entender como a pesquisa pode ajudar a recuperar os recifes de corais degradados pelos efeitos da poluição e pelo aquecimento global.

“Nos últimos três anos, definimos protocolos de coleta, congelamento, descongelamento e inseminação. Agora, precisamos acompanhar detalhadamente esses corais em ambiente controlado de laboratório e, depois, levá-los para um ambiente recifal para observar seu desenvolvimento”, reforça Godoy.

Branqueamento dos recifes ameaça a espécie

Os recifes de corais são conhecidos como “florestas tropicais do oceano” por conta de sua beleza multicolorida e de importância vital para o meio ambiente, mas eles correm sérios riscos de extinção nas próximas décadas. Portanto, a pesquisa pioneira coordenada por Godoy pode ajudar na recuperação de uma espécie fundamental para nossa biodiversidade.

Um dos principais riscos à existência dos recifes é um processo chamado “branqueamento”, problema causado por uma série de fatores. Os corais são coloridos porque abrigam microalgas que vivem no seu tecido. Essas microalgas fazem fotossíntese e o material químico resultante serve de alimento para os próprios corais. Mas, o aquecimento do oceano nas últimas décadas está desequilibrando esse processo.

A água mais quente faz com que as algas produzam elementos tóxicos para os corais, que acabam expulsando as algas de seu próprio tecido, deixando-os sem alimentos. É por isso que ficam descoloridos. Sem as algas, o esqueleto branco do coral fica à mostra, pois seu tecido é transparente. “Sem essa relação de simbiose com as algas, eles acabam morrendo”, explica Godoy.

Criobiologia, uma ciência nova

A criobiologia, usada no projeto dos corais, ainda é uma ciência nova, em desenvolvimento. A primeira vez que os cientistas conseguiram congelar uma célula com sucesso foi em 1949, em um centro de pesquisa agropecuária da Inglaterra. Inicialmente, sua aplicação era focada em animais domésticos, como bovinos, aves e suínos, como forma de garantir linhagens de sucesso.

Ao longo do tempo, ganhou aplicação em toda a indústria agropecuária e, paralelamente, hoje é usada na reprodução humana. Todas as clínicas de reprodução assistida no mundo trabalham com técnicas de criopreservação. Entretanto, pesquisas com reprodução de corais in vitro a partir de gametas congelados ocorrem apenas no Brasil, Taiwan, Estados Unidos e México. A primeira tentativa aconteceu em 2006, no Havaí.

A técnica desenvolvida no projeto é aliada à proteção da biodiversidade. “A preservação do material genético das espécies, sejam de corais ou não, e a formação de um banco de gametas, é uma das grandes contribuições que a ciência pode dar à natureza. Conforme percebemos que mais espécies se aproximam da extinção, isso deve estimular o surgimento de novas demandas para essa técnica, que tende a se popularizar cada vez mais”, prevê a gerente de Ciência e Conservação da Fundação Grupo Boticário, Marion Silva.

Importância dos corais

De acordo com relatório do World Resources Institute (WRI), os recifes se estendem por 250 mil quilômetros quadrados do oceano e são um dos ecossistemas mais produtivos e biologicamente ricos do planeta. Quando os recifes desaparecem ou morrem, muitas espécies também sucumbem.

Os corais têm diversas funções e serviços ecossistêmicos. Eles são usados como abrigo por diversas espécies de peixes, que se escondem de predadores e conseguem se alimentar e se reproduzir dentro das estruturas dos recifes. Sua preservação também é importante para a economia e a sobrevivência da população de muitos países, como o Brasil. De acordo com o relatório do WRI, 850 milhões de pessoas do planeta vivem a menos de 100 quilômetros de um recife e obtêm benefícios de seus serviços, como a alimentação proveniente de peixes que frequentam ou utilizam os corais de algum jeito.

O relatório ainda aponta que mais de 100 países se beneficiam da indústria do turismo em áreas de recifes, principalmente países tropicais. No litoral de parte do Nordeste brasileiro, por exemplo, o turismo local depende de atrações relacionadas aos corais, atraindo mergulhadores, praticantes de snorkel e pescadores recreativos, além de comunidades locais que tiram seu sustento do mar.

De acordo com a pesquisa “Oceano sem mistérios – Desvendando os recifes de corais”, lançada pela Fundação Grupo Boticário em outubro de 2023, as atividades relacionadas ao turismo em destinos com recifes de corais no Nordeste brasileiro movimentam cerca de R$ 7 bilhões anualmente. O estudo está disponível para download no aqui.

Segundo Godoy, o problema é que o turismo de massa prejudica os próprios corais por causa do pisoteamento e dos efeitos da poluição ambiental. “O turismo acaba sendo bem destrutivo para o ambiente recifal”, diz Godoy, que acrescenta que mais estudos ainda são necessários para entender melhor esse impacto e como minimizá-lo.

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