Murilo Gitel

Dia Mundial da Água: por que o acesso ao recurso também é uma questão de justiça e paz?

Neste Dia Mundial da Água, lembrado nesta sexta-feira, 22 de março, a ONU nos convida a refletir sobre um tema profundamente relevante e urgentemente necessário: “Água para Paz”.

Este tema, escolhido pelas Nações Unidas para nortear o Dia Mundial da Água em 2024, lança luz sobre a intrínseca conexão entre o acesso à água e a promoção da paz, dois pilares fundamentais para o desenvolvimento sustentável e a harmonia global.

A água, além de ser um recurso vital para a sobrevivência de todos os seres vivos, desempenha um papel central na criação de comunidades estáveis e prósperas.

No entanto, a sua escassez, ou mesmo a gestão inadequada, pode se tornar um ponto de tensão e conflito entre povos e nações. Por isso, o acesso equitativo e sustentável à água é muito mais do que uma questão ambiental: é uma questão de justiça social e de paz.

A relação entre água e paz também se alinha estreitamente com o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 16 das Nações Unidas, que visa promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis.

Um dos conflitos mais conhecidos pela água em nível mundial envolve os países da bacia do Rio Nilo, especialmente Egito, Etiópia e Sudão. A construção da Grande Barragem do Renascimento Etíope no Nilo Azul, um afluente principal do Nilo, tem sido fonte de tensão, uma vez que países a jusante, como o Egito, dependem historicamente das águas do Nilo para sua agricultura e abastecimento de água potável. Este é apenas um dos inúmeros exemplos que poderiam ser citados.

Nesse sentido, o acesso justo à água pode contribuir significativamente para a redução de conflitos, promovendo uma paz duradoura e possibilitando o desenvolvimento de milhares de comunidades mundo afora.

Contudo, o acesso equitativo à água e, por consequência, a promoção da justiça social e da paz, requerem uma abordagem multifacetada, a qual inclui:

  • Políticas públicas eficazes;
  • Investimentos em tecnologias sustentáveis de gestão de água;
  • Educação e conscientização da população sobre a importância da conservação deste recurso essencial;
  • Cooperação internacional robusta para enfrentar os desafios hídricos globais.

Acesso a água potável no Brasil

De acordo com dados da Trata Brasil, organização da sociedade civil de interesse público (Oscip) que desenvolve ações e estudos visando fomentar o saneamento básico no país, 33 milhões de brasileiros carecem de acesso a água potável atualmente.

Este dado alarmante chama a atenção pelo fato de o país abrigar dois dos maiores aquíferos do mundo – o Guarani, localizado no Centro-Sul do país, e o Alter do Chão, na Região Norte.

Segundo o levantamento, dos municípios analisados, apenas 22 têm 100% de abastecimento de água. Os piores resultados foram observados em Porto Velho, com apenas 41,74% da população tendo acesso à água potável, seguido de Ananindeua (PA), com 42,74%; Santarém (PA), com 48,8%; Rio Branco, com 53,5%; e Macapá, com 54,38%.

Água como direito constitucional

Com o objetivo de garantir água potável a todos brasileiros, tramita no Congresso Nacional uma proposta de emenda à Constituição (PEC) que, se aprovada e promulgada, incluirá a água na lista de direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal.

Apresentada em 2018 pelo então senador Jorge Viana (PT-AC), a PEC tramita agora na Câmara e tem como relator o deputado Pedro Campos (PSB-PE). Segundo ele, a PEC 6/2021 é um “passo importantíssimo para garantia do acesso à água para milhões de brasileiros que hoje não têm acesso à água potável e tratada”.

Que este Dia Mundial da Água possa servir como um convite ao mundo (governos, empresas, sociedade civil organizada e cidadãos comuns) no sentido de um maior comprometimento em prol da defesa da gestão sustentável da água, reconhecendo sua importância crítica para a construção de um futuro mais pacífico e sustentável.

Juntos, podemos transformar a maneira como interagimos com este recurso vital, garantindo que a água sirva como uma ponte para a paz, e não como uma fonte de conflito.

 

 

Murilo Gitel, editor do Notícia Sustentável, é jornalista especializado em Meio Ambiente e Sustentabilidade.


Energia renovável sim, mas não assim!

Não é mais nenhuma novidade que as energias renováveis são imprescindíveis para a descarbonização do planeta, uma vez que são capazes de substituir ou, ao menos, reduzir a dependência dos combustíveis fósseis, que quando queimados liberam gases de efeito estufa na atmosfera – uma das principais causas da emergência global que o mundo enfrenta atualmente.

Não à toa, um grupo de 118 países (incluindo o Brasil) se comprometeu por meio de um acordo na COP28, em Dubai, a triplicar a produção de energia renovável até 2030, o que alcançaria 11.000 gigawatts (GW), em comparação com os cerca de 3.400 GW atuais.

Desde que passei a cobrir temas relacionados à sustentabilidade, em 2008, tenho ouvido que a energia proveniente do vento, do sol, biomassa e demais fontes naturais são a chave para um mundo com menos emissão de gases do efeito estufa. Mas será que todos esses projetos que se vendem como “limpos”, podem, de fato, ser considerados “sustentáveis”? A resposta é não.

Ocorre que, muitas vezes, grandes empreendimentos eólicos e solares – apenas para citar os mais comuns referentes ao Brasil em termos de energias renováveis – deixam de considerar aspectos ambientais, econômicos e sociais das populações que vivem no entorno de onde eles são instalados.

Em diversos casos falta transparência e diálogo de parte das empresas (geralmente multinacionais) e governos, o que acarreta uma série de prejuízos a inúmeras pessoas, incluindo, por exemplo, comunidades de ribeirinhos, pescadores, pequenos produtores rurais, indígenas e quilombolas.

Cientes dessa realidade, comunidades do Nordeste lançaram, no dia 31 de janeiro, o documento “Salvaguardas Socioambientais para Energia Renovável”, o qual lista 100 medidas para mitigar impactos sociais e ambientais que vêm sendo verificados na expansão dos setores eólico e solar no Brasil.

Elaborado por diversas mãos após mais de dois anos de debates, a partir de uma provocação trazida pelo Plano Nordeste Potência, o documento se baseia no lema “Energia renovável sim, mas não assim”, criado por movimentos sociais da Espanha em resposta à expansão dos projetos de fontes renováveis no país que não consideravam os impactos socioambientais.

Cá deste lado do Oceano Atlântico, a realidade é bem similar, o que reforça a importância desta iniciativa inédita, que contou com a participação de 29 organizações e instituições, e que pode ajudar o País a enfrentar as contradições da implantação de parques eólicos e solares nem tão limpos assim, em que pese o caráter renovável da energia que geram.

As sugestões de medidas administrativas, políticas e legais que constam no documento “Salvaguardas Socioambientais para Energia Renovável”, objetivam responder a três grandes grupos de questionamentos:

1) Contratos: há grande desequilíbrio entre empreendedores e pequenos proprietários ou posseiros, que arrendam suas terras para a instalação das usinas e outras estruturas relacionadas com cláusulas injustas;

2) Outorga: a outorga para geração e transmissão de energia não raro deixa de incluir uma análise qualificada de componentes ambientais, sociais, etnoculturais, produtivos ou agrários;

3) Licenciamento ambiental: majoritariamente estadual, tem sido ineficaz para fazer frente aos problemas enfrentados e não fornece ações adequadas de reparação.

“Eles [a empresa] chegam com promessas de melhorias que não acontecem. Eles vão embora e a gente fica aqui com os impactos, os prejuízos e o medo”, relatou à Folha de S. Paulo Dorinha Manato, da Associação Quilombola Serra dos Rafaéis, na divisa do Piauí com Pernambuco.

O desmatamento para instalação das usinas eólicas e solares, já detectado em 2022 pelo MapBiomas em grandes áreas da Caatinga, é outro ponto que merece atenção, uma vez que compromete a fauna e a flora do único bioma exclusivamente brasileiro – onde a maior parte desses empreendimentos está instalada.

Sem dúvida alguma, urge a necessidade de políticas públicas e fiscalização adequada capazes de assegurar os direitos das comunidades que vivem no entorno de empreendimentos geradores de energia renovável. Nesse sentido, governos, empresas e instituições como o Ministério Público deveriam tomar conhecimento desta iniciativa inédita que acaba de ser lançada.

Sobre a provocação do Plano Nordeste Potência (citada no início deste artigo), e que motivou a criação do documento “Salvaguardas Socioambientais para Energia Renovável”, deixo-a aqui para estimular à reflexão:

Como o nosso país pode gerar e transmitir energia renovável sem violar direitos humanos, causar injustiça e racismo ambiental nos territórios, colocar em risco a produção de alimentos e a segurança alimentar, provocar desmatamento e perda de fauna e biodiversidade, e sem estabelecer relações contratuais abusivas e concentração de renda e levar à expulsão das comunidades rurais da terra?

Conheça o documento aqui

Murilo Gitel é jornalista especializado em Meio Ambiente e Sustentabilidade, e editor do Notícia Sustentável.

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Cidades Arborizadas

A cidade em que você vive é bem arborizada ou, ao contrário disso, está mais para uma selva de concreto e aço? Caso a resposta tenha sido a segunda alternativa, certamente os custos com a saúde pública em seu município tendem a ser gigantescos… É que além de ajudarem a remover as partículas finas emitidas pelos carros e pelas indústrias, reterem a água da chuva e filtrarem o ar, as árvores também contribuem para a redução de doenças cardíacas, obesidade e depressão.

A conta é simples: mais árvores significam menos enfermidades. Os dados constam de um relatório publicado em 2017 por uma das maiores organizações não governamentais do mundo ligadas ao meio ambiente, a The Nature Conservancy (TNC), o qual defende que as árvores urbanas são uma importante estratégia para a melhoria da saúde pública nas cidades, devendo ser financiadas como tal.

O pesquisador Robert McDonald, cientista da TNC e coautor do relatório, observa que trazer a natureza de volta para as cidades é uma estratégia crítica para se melhorar a saúde pública. O especialista contrapõe assim a ideia equivocada de que as árvores são “artigos de luxo”, assim como os parques a céu aberto – aliás, equipamentos urbanos cada vez mais negligenciados em tempos de shoppings centers. Embora inúmeros estudos demonstrem os benefícios dos espaços verdes, muitos municípios ainda deixam de fazer a ligação entre a saúde da população e a presença de árvores no ambiente urbano.

A questão é que entre três e quatro milhões de pessoas morrem, em todo o mundo, anualmente, devido a poluição atmosférica e aos seus impactos na saúde humana. Só para se ter ideia, este número estratosférico supera o da população de Salvador. A poluição do ar aumenta o risco de doenças respiratórias crônicas. Há estudos que a associam ainda às doenças cardiovasculares. As ondas de calor nas zonas urbanas também fazem milhares de vítimas todos os anos. Uma solução eficaz, nesse sentido, é ocupar os espaços urbanos com o plantio de árvores.

E se engana quem imagina que as árvores são economicamente inviáveis. Segundo um estudo do Serviço Florestal dos Estados Unidos, cada $1 gasto na plantação de árvores tem um retorno de cerca de $5,82 em benefícios públicos, tais como: redução da poluição atmosférica, dos custos associados ao aquecimento e arrefecimento dos edifícios, das emissões de carbono e a retenção da água da chuva.

McDonald observa: “A comunicação e a coordenação entre os departamentos de parques, florestas e saúde pública de uma cidade são raras. Quebrar estas barreiras pode revelar novas fontes de financiamento para a plantação e gestão de árvores.” Um bom exemplo é o de Toronto, no Canadá, onde o departamento de saúde pública trabalhou em conjunto com o florestal para fazer frente à ilha de calor urbano existente por lá. Como muitos edifícios careciam de ar-condicionado, os dois setores colaboraram de forma a colocarem, estrategicamente, árvores nos bairros onde as pessoas estão particularmente vulneráveis ao aquecimento.

O relatório da TNC ajuda a reforçar que a presença ou ausência de natureza urbana, assim como os seus inúmeros benefícios, é ditada pelo nível de rendimentos de um bairro, o que resulta em desigualdades consideráveis em termos de saúde. A taxa de óbitos entre os homens de meia idade que moram em zonas desfavorecidas com espaços verdes é inferior em 16% à dos que vivem em zonas desfavorecidas mais urbanizadas, de acordo com um estudo da Universidade de Glasgow, na Escócia.

Mas qual é a chave para fazer a ligação entre as árvores urbanas e os seus efeitos positivos na saúde mental e física? Para McDonald, os diversos serviços de saúde devem ver as árvores como um elemento essencial para uma comunidade saudável e habitável, além de uma “estratégia fundamental para a melhoria da saúde pública”.

Em Nova York (EUA), as árvores da cidade propiciam uma economia de US$ 111 milhões anualmente. Na “Big Apple”, o departamento de parques e recreação (NYC Parks) mapeou, em parceria com 2.300 voluntários, 684,5 mil árvores. Praticamente toda a vegetação da metrópole está catalogada em um Mapa de Árvores online e interativo, que cataloga cada espécime e fornece informações sobre seu impacto ambiental e financeiro. Na avenida Sheffield, no Brooklyn, há por exemplo uma unidade da espécie Fraxinus (freixo, em português, ou ash, em inglês). Só ela retém 3,7 mil galões de água de chuva anualmente – e poupa aos cofres municipais, por ano, US$ 348 dólares ao reduzir a emissão de gases poluentes. No mapa, ao clicar em uma árvore, é possível ver informações sobre a espécie, a folha, o diâmetro, o endereço com número onde a árvore está e sua foto, pelo Google Street View.

Um estudo desenvolvido por pesquisadores da Universidade Parthenope de Nápoles, na Itália, revela que ao se plantar 20% a mais de árvores em grandes cidades, é possível dobrar os benefícios fornecidos por essas plantas ao meio ambiente e aos habitantes. Theodore Endreny e sua equipe utilizaram a ferramenta on-line i-Tree Canopy para estudar florestas urbanas de dez metrópoles: Pequim, Buenos Aires, Cairo, Istambul, Londres, Los Angeles, Cidade do México, Moscou, Mumbai e Tóquio. Na análise, foram consideradas questões como as espécies arbóreas, a população humana, a poluição no ar e o uso de energia.

Todavia, é sempre válido lembrar que o processo de arborização deve ser bem planejado. É fundamental a assistência de pessoas especializadas, como engenheiros agrônomos, para que a árvore não seja plantada perto de caixas de telefone, fiação e esgotos. Além disso, a planta precisa ter características capazes de sobreviver ao ambiente urbano.

De qualquer forma, fazer com que as cidades sejam mais arborizadas é uma responsabilidade de todos: governos, empresas e cidadãos em geral. O que não podemos mais aceitar, em pleno século 21, é que rios de dinheiro que saem dos nossos próprios bolsos, por meio de impostos, acabem destinados ao tratamento de doenças que poderiam ser evitadas caso o lugar em que moramos fosse mais verde e, consequentemente, dotado de mais qualidade de vida.

Cidades mais verdes = população mais saudável. Esta é a conta que precisa ser compreendida.

Murilo Gitel é jornalista especializado em sustentabilidade e editor do Notícia Sustentável. Foi repórter, coordenador do plantão de notícias e diretor de conteúdo do EcoD. Na Rádio CBN Salvador comandou a coluna Soluções Sustentáveis. Contribui periodicamente para o canal CORREIO Sustentabilidade, do jornal CORREIO, e para a agência de notícias Eco Nordeste.