“Antes de ser mercadoria, comida é um direito humano”

Os sistemas alimentares representam 10% da economia global Foto: © Ryan Brown/ONU Mulheres

Todos os dias, centenas de milhões de pessoas vão para a cama com fome. Três bilhões de pessoas não podem pagar por uma dieta saudável. Dois bilhões estão com sobrepeso ou obesos e 462 milhões estão abaixo do peso. Quase um terço de todos os alimentos produzidos são desperdiçados. Estes são apenas alguns dos problemas e contradições expostos pelo secretário-geral da ONU, António Guterres, nesta quinta-feira (23), na abertura da Cúpula dos Sistemas Alimentares da ONU.

O evento reuniu agricultores e pescadores, jovens, povos indígenas, chefes de Estado, governos e muitos outros, em um esforço para transformar o setor e colocar o mundo de volta no caminho certo para alcançar todos os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) até 2030.

Para Guterres, “a mudança dos sistemas alimentares não só é possível, mas necessária”; para as pessoas, para o planeta e para a prosperidade.

O chefe da ONU advertiu, no entanto, que a pandemia de COVID-19 tornou o desafio muito maior ao aprofundar as desigualdades, dizimar economias, mergulhar milhões na pobreza extrema e elevar a fome em um número crescente de países.

Ao mesmo tempo, o mundo está “travando uma guerra contra a natureza e colhendo frutos amargos”, ressaltou o chefe da ONU, referindo-se às safras arruinadas, rendimentos decrescentes e sistemas alimentares falhando.

Os sistemas alimentares também geram um terço de todas as emissões de gases de efeito estufa, alertou Guterres, pontuando que estes também são responsáveis ​​por até 80% da perda de biodiversidade no mundo.

4 soluções para transformar os sistemas agrícolas e alimentares 

Em busca de soluções – Nos últimos 18 meses, por meio de diálogos nacionais, os governos reuniram empresas, comunidades e a sociedade civil para traçar caminhos para o futuro dos sistemas alimentares em 148 países. Mais de cem mil pessoas se reuniram para discutir e debater soluções. A partir dessas discussões, surgiram muitas propostas. O secretário-geral destacou três áreas principais de ação.

Apoio à saúde e bem-estar – Sistemas alimentares precisam apoiar a saúde e o bem-estar de todas as pessoas, clamou Guterres, na primeira parte de seu discurso no evento, destacando o papel da alimentação na qualidade de vida das pessoas. O secretário-geral também lembrou que dietas nutritivas e diversificadas costumam ser caras ou inacessíveis, e disse estar satisfeito ao ver muitos Estados-membros se unindo em torno do acesso universal a refeições nutritivas nas escolas.

Proteger o planeta – Além disso, o secretário Guterres argumentou que o mundo precisa de sistemas alimentares que protejam o planeta.

“É possível alimentar uma população global crescente e, ao mesmo tempo, proteger nosso meio ambiente. Os países precisam chegar à COP26, em Glasgow, com planos ousados ​​e direcionados para cumprir a promessa do Acordo de Paris”, insistiu o chefe da ONU, de forma enfática, destacando que ainda há tempo de alcançar as metas do Acordo de forma consciente e ativa.

“A guerra em nosso planeta deve acabar e os sistemas alimentares podem nos ajudar a construir essa paz”, acrescentou Guterres, refletindo sobre o potencial dos sistemas alimentares de reverter conflitos pelo globo.

Apoio à prosperidade

Outro potencial dos sistemas alimentares é a capacidade de apoiar a prosperidade no mundo, e isso é muito necessário, enfatizou o chefe da ONU.

“Não apenas a prosperidade das empresas e acionistas. Mas a prosperidade dos agricultores e trabalhadores do setor de alimentos e, claro, dos bilhões de pessoas em todo o mundo que dependem dessa indústria para seu sustento ”, insistiu o secretário-geral, ao argumentar que a prosperidade deve alcançar não apenas o comércio e os negócios, mas também as pessoas em todo o globo que dependem da indústria de alimentos não apenas para trabalho, mas também para se alimentarem.

Orgulhoso dos trabalhadores e trabalhadoras do campo e aqueles que transportam alimentos durante a pandemia, Guterres disse que “essas mulheres e homens foram os heróis não celebrados nos últimos 18 meses”. Entretanto, o chefe da ONU lamentou que “muitas vezes, esses trabalhadores são mal pagos, até mesmo explorados”.

Recuperação da Covid-19 

Os sistemas alimentares representam 10% da economia global. O secretário-geral reforçou o seu potencial de “atuarem como um poderoso impulsionador para uma recuperação inclusiva e equitativa da COVID-19”. Para tornar isso realidade, no entanto, Guterres alertou que os governos precisam mudar a abordagem sobre subsídios agrícolas e apoio ao emprego para os trabalhadores.

Eles também precisam repensar como vêem e valorizam os alimentos, “não apenas como uma mercadoria a ser negociada, mas como um direito que todos compartilham”, insistiu o chefe da ONU, lamentando a maneira que o setor alimentício entende os alimentos numa escala global.

O secretário-geral assegurou que a ONU continuará, nesse sentido, junto à comunidade internacional. A organização está convocando uma cúpula de acompanhamento, em dois anos, para fazer um balanço do progresso. Enquanto isso, mais empresas precisam se juntar a estas ações e a voz da sociedade civil precisa continuar pressionando por mudanças, clamou Guterres.

Pnuma incentiva redução do desperdício de alimentos saudáveis e nutritivos 

“Durante todo o processo, precisamos do envolvimento das pessoas que estão no centro de nossos sistemas alimentares. Agricultores familiares, pastores, trabalhadores, povos indígenas, mulheres, jovens. Vamos aprender uns com os outros e ser inspirados uns pelos outros, enquanto trabalhamos juntos para alcançar os ODS”, concluiu o secretário-geral, em seu discurso durante a Cúpula.

Na abertura do evento, a enviada especial do secretário-geral da ONU para a Cúpula dos Sistemas Alimentares, Agnes M. Kalibata, reforçou o potencial dos sistemas ao dizer que estes “têm um poder incrível para acabar com a fome, construir vidas mais saudáveis ​​e sustentar nosso belo planeta.”

Especialistas preocupados

Na véspera da Cúpula, três especialistas independentes em direitos humanos da ONU expressaram preocupação de que o evento não tenha a aderência esperada, destacando a importância do debate sobre a questão da produção de alimentos. Isso pode deixar para trás e excluir os mais marginalizados e vulneráveis de um debate que claramente os afeta, alertaram os especialistas.

Os representantes nomeados pelo Conselho de Direitos Humanos, que estiveram envolvidos na preparação da Cúpula,  afirmaram que o evento é “inclusivo, mas deixou muitos participantes e mais de 500 organizações que representam milhões de pessoas, sentindo-se ignorados e decepcionados”.

Em uma declaração conjunta, os relatores do Conselho revelaram que “a Cúpula pode, infelizmente, apresentar os direitos humanos aos governos como uma política opcional, em vez de um conjunto de obrigações legais”.

Os especialistas temem que haja o risco de que a Cúpula sirva ao setor corporativo “mais do que às pessoas, que são essenciais para garantir o florescimento de nossos sistemas alimentares, como trabalhadores, pequenos produtores, mulheres e povos indígenas”.

* A declaração conjunta foi assinada por Michael Fakhri, relator especial para o direito à Alimentação, David Boyd, relator especial sobre direitos humanos e meio ambiente, e Olivier de Schutter, relator especial sobre pobreza extrema e direitos humanos.

(Via ONU News)

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