Atividade humana é elo comum entre desastres em todo o mundo

A pandemia da Covid-19 reduziu a eficácia da resposta aos desastres/Foto: © Viet Hung/Unicef

Desastres como ciclones, enchentes e secas estão mais conectados do que podemos pensar, e a atividade humana é o fio condutor, revela um relatório da ONU divulgado na quarta-feira, 8 de setembro.

O estudo foi produzido pela Universidade da ONU, o braço acadêmico e de pesquisa da organização. Ele analisa 10 desastres diferentes que ocorreram em 2020 e 2021, e conclui que, embora tenham acontecido em locais muito diferentes e inicialmente não pareçam ter muito em comum , eles estão, de fato, interligados.

A importância de reduzir as emissões globais de metano

A base do trabalho é o inovador Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC), que lançou uma avaliação em 9 de agosto com foco em dados melhorados sobre o aquecimento histórico, a qual demonstrou que a influência humana tem aquecido o clima em níveis sem precedentes há pelo menos 2 mil anos. O secretário-geral da ONU, António Guterres, descreveu a avaliação do IPCC como um “alerta vermelho para a humanidade”.

Na pesquisa, a Universidade das Nações Unidas cobriu vários desastres que ocorreram durante o período de 2020 a 2021. O mais notório deles é, naturalmente, a pandemia da Covid-19, mas na lista estão inclusos uma onda de frio que paralisou o estado americano do Texas, incêndios florestais que destruíram quase 5 milhões de acres da floresta amazônica e 9 fortes tempestades no Vietnã. Todos esses eventos ocorreram em apenas 7 semanas.

Elo entre o Ártico e o Texas

Embora esses desastres ocorram a milhares de quilômetros de distância, o estudo mostra como eles se relacionam e quais são as consequências para pessoas que vivem em lugares distantes.

Um exemplo disso é a recente onda de calor no Ártico e a onda de frio no Texas. Em 2020, o Ártico experimentou temperaturas do ar excepcionalmente altas e a segunda menor quantidade de gelo marinho já registrada.

Este ar quente desestabilizou o vórtice polar, uma massa giratória de ar frio acima do Pólo Norte, permitindo que o ar mais frio se movesse para o sul na América do Norte, contribuindo para as temperaturas abaixo de zero no Texas, durante as quais a rede elétrica congelou, e 210 pessoas morreram.

A Covid e o ciclone

Outro exemplo das conexões entre os desastres incluídos no estudo e a pandemia de Covid-19 é o ciclone Amphan, que atingiu a região fronteiriça da Índia e Bangladesh.

Em uma área onde quase 50% da população vive abaixo da linha da pobreza, a pandemia da Covid-19 e o as restrições subsequentes deixaram muitas pessoas sem meios de subsistência, incluindo trabalhadores migrantes que foram forçados a retornar às suas áreas de origem e foram alojados em abrigos contra ciclones enquanto estavam em quarentena.

Quando a região foi atingida pelo ciclone Amphan, muitas pessoas, preocupadas com o distanciamento social, higiene e privacidade, evitaram os abrigos e decidiram enfrentar a tempestade em locais sem segurança. Na sequência, houve um aumento nos casos da Covid-19, agravando as 100 mortes causadas diretamente pelo Amphan, que também causou danos superiores a 13 bilhões de dólares e deslocou 4,9 milhões de pessoas.

Raiz dos problemas

O novo relatório identifica três causas básicas que afetaram a maioria dos eventos na análise: emissões de gases de efeito estufa induzidas pelo homem, gestão insuficiente do risco de desastres e subvalorização dos custos e benefícios ambientais na tomada de decisões.

A primeira delas, as emissões de gases de efeito estufa induzidas pelo homem, é identificada como uma das razões pelas quais o Texas experimentou temperaturas congelantes, mas essas emissões também contribuem para a formação de super ciclones como o ciclone Amphan, do outro lado do mundo.

Consequências do recorde de calor nos oceanos

A gestão insuficiente do risco de desastres, observa o estudo, foi uma das razões pelas quais o Texas sofreu tanto com a perda de vidas e danos excessivos à infraestrutura durante a onda de frio, e também contribuiu para as altas perdas causadas pelas enchentes no Vietnã Central.

O relatório também mostra como o índice recorde de desmatamento na Amazônia está ligado à alta demanda global por carne: essa demanda tem levado a um aumento na necessidade de soja, que é usada como ração para aves. Como resultado, trechos de floresta estão sendo cortados.

“O que podemos aprender com este relatório é que os desastres que vemos acontecendo ao redor do mundo estão muito mais interconectados do que podemos imaginar e também estão ligados ao comportamento individual”, disse um dos autores do relatório, o cientista da UNU, Jack O’Connor. “Nossas ações têm consequências, para todos nós”.

Soluções também vinculadas

O’Connor afirma que, assim como os problemas estão interligados, as soluções também estão.

O relatório mostra que a redução das emissões de gases de efeito estufa prejudiciais pode afetar positivamente o resultado de muitos tipos diferentes de desastres, evitar um aumento na frequência e gravidade dos perigos e proteger a biodiversidade e os ecossistemas.

Conheça a lista de desastres interconectados disponibilizada pela Universidade da ONU:

  • O relatório Riscos de Desastres Interconectados 2020/2021, é lançado pelo Instituto de Meio Ambiente e Segurança Humana da Universidade das Nações Unidas (UNU-EHS), que conduz pesquisas sobre riscos e adaptação relacionados a perigos ambientais e mudanças globais;
  • A pesquisa do instituto promove políticas e programas para reduzir esses riscos, levando em consideração a interação entre fatores ambientais e sociais;
  • As áreas de pesquisa incluem adaptação à mudança climática incorporando abordagens relacionadas a seguros, migração induzida pelo meio ambiente e vulnerabilidade social, soluções baseadas em ecossistemas para adaptação e redução de risco de desastres e modelos e ferramentas para analisar a vulnerabilidade e riscos associados a desastres naturais.

De gafanhotos a ciclones

No dia em que o estudo foi divulgado, uma reportagem da UN News observou o impacto de um enxame de gafanhotos em um fazendeiro queniano e as maneiras como o ciclone Amphan afetou um trabalhador indiano.

A enorme nuvem de gafanhotos que atingiu o Chifre da África na primavera de 2020, e o ciclone Amphan, que atingiu a região da fronteira da Índia e Bangladesh em maio daquele ano, podem não parecer, à primeira vista, estar conectados.

No entanto, o relatório da Universidade das Nações Unidas mostra que existem causas subjacentes conectadas: emissões de gases de efeito estufa provenientes da atividade humana, que estão afetando o meio ambiente de maneiras imprevisíveis, e falta de gerenciamento de risco de desastres.

Ambos os desastres ocorreram em 2020, com o mundo dominado pela pandemia da Covid-19, o que significou que a eficácia da resposta a ambos os desastres foi reduzida, com movimento restrito tanto para humanitários quanto para vítimas, que também se encontravam mais vulneráveis ​​financeiramente .

Duas das pessoas diretamente afetadas compartilharam suas histórias com a ONU: Susan Mumbi Karanja, uma agricultora do condado de Nyandarua, no Quênia, e Sudhansu Shekhar Maity, que vende artigos de papelaria na cidade indiana de Calcutá.

Leia os depoimentos de Susan Mumbi Karanja e Sudhansu Shekhar Maity:

Enxame de proporções bíblicas – “Meu nome é Susan Mumbi Karanja. Eu moro em uma vila chamada Karima, no condado de Nyandarua. Sou agricultor e tenho seis filhos.

Quando os gafanhotos chegaram em março de 2020, nós os vimos vindo das colinas. Eram tantos. Atacaram toda a comida: os repolhos, as cenouras, as batatas, tudo o que havia na fazenda. Quando eles chegaram, você nem conseguia ver o sol. Ficava escuro. Você não podia ir trabalhar, as vacas não podiam nem comer.

Tínhamos ouvido falar do enxame na TV, mas não achávamos que ele chegaria até nós. Quando aconteceu, o governo enviou pessoas para cá, e eles pulverizaram produtos químicos nos gafanhotos, mesmo onde havia comida.

Vimos que, quando os produtos químicos foram pulverizados, alguns gafanhotos morreram e outros apenas dormiram e esperaram o sol nascer novamente. Eles comeram grande parte da comida, que também foi destruída pelos produtos químicos.

Quando o enxame partiu, não havia comida para comer e nem para vender. As vacas não produziam leite porque não havia nada para comer: gafanhotos estavam por toda parte, até na grama. Não podíamos nem comer os gafanhotos, porque eles haviam sido borrifados com produtos químicos.

A única coisa que pode ser feita é o governo descobrir de onde vêm os gafanhotos, para que possam contê-los ou queimá-los. Durante a nuvem, eles até enviaram um helicóptero para se livrar deles, mas ele falhou e foi embora.

Estamos nos perguntando o que podemos fazer. Não pode haver planejamento por causa da ameaça de gafanhotos; só o governo pode ajudar”.

Sobrevivendo a Amphan – “Eu sou Sudhansu Shekhar Maity e sou da vila de Ramganga em Bengala Ocidental.

Por causa da pandemia da COVID-19 e das medidas de isolamento subsequentes, tive que deixar meu emprego em Calcutá em março de 2020 e voltar para minha aldeia, onde fiquei por seis meses.

Com base em notícias de diferentes meios de comunicação, havia uma sensação de terror com a propagação do vírus e ficamos com medo de sair.

Obviamente, enfrentei uma grande crise financeira. Se ficarmos em casa dias após dias e não pudermos ir trabalhar, como vamos gerar renda?

Durante o ciclone Amphan, podíamos ver claramente o mar da minha casa, e a água atingindo os limites era horrível, com ondas de 20 a 25 pés. No momento em que o ciclone começou a se aproximar, pudemos ouvir o barulho perturbador do vento forte batendo nas janelas. Parecia um bombardeio. O rio começou a transbordar e a água começou a entrar na aldeia.

As pessoas começaram a correr, junto com seus rebanhos, como vacas, búfalos e cabras, para se salvar. A maioria das pessoas se abrigou em hotéis.

Quando o ciclone passou, saí de casa e tudo que pude ver foi água: a maioria das casas estava debaixo d’água, e as casas de barro haviam se desintegrado.

Os reservatórios são a fonte de água mais confiável nas áreas das aldeias, criamos peixes nesses reservatórios, o que é bom o suficiente para o nosso consumo anual. Por causa das enchentes, os reservatórios ficaram cheios de água salgada e todos os peixes morreram.

Todas as plantações foram destruídas devido ao ciclone e às inundações. Os fazendeiros enfrentaram os tempos mais terríveis devido ao ciclone: ​​eles cultivavam nos telhados de barro cozido de suas casas, e eles foram todos destruídos.

Logo depois do ciclone, a primeira coisa que consegui pensar foi na comida e na água potável. E como vamos viver nossa vida? Todas as nossas lagoas e terras foram destruídas. Sem vegetais e mantimentos, sem conectividade, sem eletricidade, todas as estradas estavam bloqueadas e não havia acesso aos centros de saúde mais próximos. Com a falta de água potável, tivemos que ficar em uma longa fila para conseguir água do poço: há um poço para cerca de 50-60 famílias.

Enfrentamos tempos realmente difíceis e minhas economias foram gastas durante o isolamento social. Ainda estou tentando me recuperar da situação. Cerca de 12.000 famílias vivem em nossa aldeia e a maioria delas sofreu”.

(Via ONU News)

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